3.12.08

Manifesto contra a criminalização das mulheres que praticam aborto

Manifesto contra a criminalização das mulheres que praticam aborto

Em defesa dos direitos das mulheres

Centenas de mulheres no Brasil estão sendo perseguidas, humilhadas e condenadas por recorrerem à prática do aborto. Isso ocorre porque ainda temos uma legislação do século passado – 1940 –, que criminaliza a mulher e quem a ajudar.

A criminalização do aborto condena as mulheres a um caminho de clandestinidade, ao qual se associam graves perigos para as suas vidas, saúde física e psíquica, e não contribui para reduzir este grave problema de saúde pública.

As mulheres pobres, negras e jovens, do campo e da periferia das cidades, são as que mais sofrem com a criminalização. São estas que recorrem a clínicas clandestinas e a outros meios precários e inseguros, uma vez que não podem pagar pelo serviço clandestino na rede privada, que cobra altíssimos preços, nem podem viajar a países onde o aborto é legalizado, opções seguras para as mulheres ricas.

A estratégia dos setores ultraconservadores, religiosos, intensificada desde o final da década de 1990, tem sido o “estouro” de clínicas clandestinas que fazem aborto. Os objetivos destes setores conservadores são punir as mulheres e levá-las à prisão. Em diferentes Estados, os Ministérios Públicos, ao invés de garantirem a proteção das cidadãs, têm investido esforços na perseguição e investigação de mulheres que recorreram à prática do aborto. Fichas e prontuários médicos de clínicas privadas que fazem procedimento de aborto foram recolhidos, numa evidente disposição de aterrorizar e criminalizar as mulheres. No caso do Mato Grosso do Sul, foram quase 10 mil mulheres ameaçadas de indiciamento; algumas já foram processadas e punidas com a obrigação de fazer trabalhos em creches, cuidando de bebês, num flagrante ato de violência psicológica contra estas mulheres.

A estas ações efetuadas pelo Judiciário somam-se os maus tratos e humilhação que as mulheres sofrem em hospitais quando, em processo de abortamento, procuram atendimento. Neste mesmo contexto, o Congresso Nacional aproveita para arrancar manchetes de jornais com projetos de lei que criminalizam cada vez mais as mulheres. Deputados elaboram Projetos de Lei como o “bolsa estupro”, que propõe uma bolsa mensal de um salário mínimo à mulher para manter a gestação decorrente de um estupro. A exemplo deste PL, existem muitos outros similares.

A criminalização das mulheres e de todas as lutas libertárias é mais uma expressão do contexto reacionário, criado e sustentado pelo patriarcado capitalista globalizado em associação com setores religiosos fundamentalistas. Querem retirar direitos conquistados e manter o controle sobre as pessoas, especialmente sobre os corpos e a sexualidade das mulheres.

Ao contrário da prisão e condenação das mulheres, o que necessitamos e queremos é uma política integral de saúde sexual e reprodutiva que contemple todas as condições para uma prática sexual segura.

A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada e não uma obrigação das mulheres. Deve ser compreendida como função social e, portanto, o Estado deve prover todas as condições para que as mulheres decidam soberanamente se querem ou não ser mães, e quando querem. Para aquelas que desejam ser mães devem ser asseguradas condições econômicas e sociais, através de políticas públicas universais que garantam assistência a gestação, parto e puerpério, assim como os cuidados necessários ao desenvolvimento pleno de uma criança: creche, escola, lazer, cultura, saúde.

As mulheres que desejam evitar gravidez devem ter garantido o planejamento reprodutivo e as que necessitam interromper uma gravidez indesejada deve ser assegurado o atendimento ao aborto legal e seguro no sistema público de saúde.

Neste contexto, não podemos nos calar!

Nós, sujeitos políticos, movimentos sociais, organizações políticas, lutadores e lutadoras sociais e pelos diretos humanos, reafirmamos nosso compromisso com a construção de um mundo justo, fraterno e solidário, nos rebelamos contra a criminalização das mulheres que fazem aborto, nos reunimos nesta Frente para lutar pela dignidade e cidadania de todas as mulheres.

Nenhuma mulher deve ser impedida de ser mãe. E nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe. Por uma política que reconheça a autonomia das mulheres e suas decisões sobre seu corpo e sexualidade.

Pela defesa da democracia e do principio constitucional do Estado laico, que deve atender a todas e todos, sem se pautar por influências religiosas e com base nos critérios da universalidade do atendimento da saúde!

Por uma política que favoreça a mulheres e homens um comportamento preventivo, que promova de forma universal o acesso a todos os meios de proteção à saúde, de concepção e anticoncepção, sem coerção e com respeito.

Nenhuma mulher deve ser presa, maltratada ou humilhada por ter feito aborto!
Dignidade, autonomia, cidadania para as mulheres!

Pela não criminalização das mulheres e pela legalização do aborto!

(Frente nacional pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do aborto)

Saúde não é mercadoria

Uma sociedade saudável é uma sociedade igualitária, solidária e democrática


O Movimento pela Reforma Sanitária, no contexto de luta pela democracia, foi um campo que se destacou pelas formulações, proposições e inovação na forma de se fazer política; um movimento democrático, com capilaridade, coerente com suas proposições. A Reforma Sanitária foi e continua sendo uma proposta, um processo de transformação da sociedade trazendo, em sua concepção, o modelo de democracia ligado à utopia igualitária; o reconhecimento da determinação social do processo saúde-doença e com ela a denúncia da exploração sofrida por nosso povo; crítica as práticas hegemônicas de saúde, apontando para a possibilidade de construção de uma nova maneira de produzir saúde que aposta na construção de sujeitos políticos autônomos como parte fundamental deste projeto.


A partir da unificação de bandeiras como a luta pela redemocratização do país e a crítica do sistema previdenciário de saúde vigente, os militantes da reforma sanitária conseguiram incluir na Constituição Federal de 1988 o direito de todos à saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) é instituído com os princípios de universalidade, participação social, atenção integral, solidariedade e justiça social. Mais do que um projeto para a saúde, o SUS desenha um modelo de sociedade. Sua proposta de reforma do Estado, democrática e popular, acena para a construção de uma sociedade justa, democrática, igualitária e participativa.


A participação popular, instrumentalizada através do controle social, representa uma completa reconfiguração na estrutura institucional brasileiro. Nasce a partir de um movimento com a concepção de que a população deve exercer o controle do Estado e contribui com a formulação de políticas que respondam as suas necessidades. O setor de saúde apresenta hoje a estrutura de participação e controle social mais ampla entre todas as áreas do país.


20 anos depois, a luta da Reforma Sanitária continua atual, os desafios são muitos...


Existe uma disputa na sociedade em relação a compreensão da saúde como um direito. O sistema privado, as indústrias farmacêuticas e modelo médico-hegemônico de formação e gestão operam na lógica de perpetuação da concepção de uma visão equivocada de saúde voltada para o consumo de serviços médicos, procedimentos e medicamentos, gerando, além de forte acumulação de capital às custas da saúde da população, um processo sem precedentes de medicalização, de normatização da vida social – conformando o que Foucault chamou de indivíduos "úteis e dóceis".


Os meios de comunicação propagam ataques ao Sistema Único de Saúde responsabilizando-o pelos problemas de saúde da população brasileira. Não é incomum sermos bombardeados diariamente por notícias sobre o mau funcionamento do SUS, pela incapacidade do Estado em gerenciar sistemas e serviços de saúde, mostrando-nos como exemplo as filas em hospitais. Como solução, apontam unicamente para propostas privatizantes de administração, como a abertura de dupla porta e a criação das organizações sociais (OSs) e organizações sociais de interesse público (OSCPIs), inclusive em hospitais de ensino.


Revolucionar a saúde no Brasil baseia-se no fortalecimento do SUS reafirmando os princípios da Reforma Sanitária de universalidade, democracia e participação popular, desconstruindo os ataques que lhe são direcionados, tanto pela mídia conservadora, como pelo sistema privado e indústrias farmacêuticas. Nosso desafio é construir uma hegemonia usuário centrada desconstruindo a concepção que vê saúde como uma mercadoria.


Reafirmamos o SUS como uma grande conquista da população brasileira e propomos ações que avancem na sua consolidação.


1. assegurar um financiamento estável para o SUS – garantindo a aprovação da regulamentação da Emenda Constitucional 29;

2. regulação dos seguros e planos de saúde

3. aprofundar os mecanismos de controle social enraizando o modelo democrático e participativo idealizado pela Reforma sanitária;

4. controle público das pesquisas;

5. fim das propagandas de remédios e indústrias farmacêuticas;

6. garantir o efetivo acesso da população em todo território nacional;

7. o fim de qualquer discriminação no atendimento no SUS;

8. garantir um modelo de gestão articulado, comprometido com a pluralidade cultural, respeitando as diferenças étnico-raciais, de gênero e orientação sexual;

9. garantir uma efetiva integração em rede proporcionando respostas concretas para as necessidades das e dos usuárias e usuários;

10. políticas de direitos sexuais e reprodutivos com o objetivo de construir a autonomia das mulheres;

11. leitos 100% SUS nos Hospitais Universitários, fim da dupla porta;

12. legalização do aborto;

13. garantir a reorientação da formação dos profissionais de saúde a partir das necessidades do Sistema Único de Saúde, avançando na formação de futuras e futuros profissionais de saúde comprometidos com os princípios do SUS.


Ana Pimentel é Diretora de Mulheres da UNE, militante da Kizomba e Marcha Mundial das Mulheres

Beatriz Selles é estudante de medicina da Universidade Federal Fluminense, militante da Kizomba

Rodrigo Oliveira - diretor do Cebes - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde.

Mulheres e Trabalho

Os tempos mudaram, e o papel da mulher na sociedade transforma-se gradualmente. Se uma vez não podiam ter outra ocupação além de cuidar da casa e da família, hoje elas até têm empregos, mas não recebem o mesmo que os homens exercendo igual função. São milhares de braços femininos produzindo para o mercado, sem a valorização merecida. Essa desigualdade mostra que expressões do tipo "o homem trabalha porque é homem e a mulher porque precisa" não foram superadas, como se diz. Apesar de as trabalhadoras já fazerem parte da realidade do mundo do trabalho, este mantém uma identidade masculina muito forte e trata as mulheres como intrusas em um espaço que é seu direito.

Para se ter noção, uma empregadora chega a receber cerca de 16 vezes mais do que uma empregada doméstica. Sob o ponto de vista de classe há um abismo social entre elas. A força das contradições, no entanto, as coloca no mesmo barco. De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (PNAD/IBGE), de 2005, a diferença de rendimentos de uma empregadora para um empregador é perto de 24,33%. Fato que se repete com as empregadas domésticas, um setor quase totalmente dominado por mulheres (apenas 0,9% são homens). O rendimento delas é 18,19% inferior ao dos homens. Só a informalidade iguala os gêneros. Nos empregos sem carteira assinada, o rendimento entre homens e mulheres difere em apenas 1,18% a favor deles.

A organização das trabalhadoras, desde o início, resultou em um longo processo histórico de transformações sociais que possibilitou às mulheres lutar por direitos, igualdade e autonomia, inclusive comemoramos isso todos os anos no dia 8 de março. Fazer o trabalho das mulheres valer menos que o dos homens, tornar seu corpo e sua vida em mercadoria, ser alvo de várias modalidades de violência são formas de marginalizar as mulheres. O que fazer para mudar isso? O movimento feminista acredita em outro projeto de sociedade, construído por todos e todas, oferecendo as mesmas condições.

Toda luta por igualdade também é luta do movimento feminista, mas é importante reconhecer que a realidade das mulheres será transformada pelas mulheres, e ninguém mais.

Contra a violência sexista!

Por mim, por nós e pelas outras
Não a violência contra a Mulher

Passada uma semana do inicio de uma história que tinha tudo para ter um fim trágico e só a polícia não enxergava isso. Todas (os) nós, acompanhamos a angústia e sofrimento passados pela jovem Eloá de 15 anos que foi mantida refém por 5 dias por seu ex-namorado dentro de sua própria casa.

Durante todo esse tempo o caso era considerado como um crime cometido por um jovem rapaz, trabalhador, inofensivo e que só estava atordoado porque havia sido abandonado por sua namorada, esse foi o tratamento dado ao caso durante todo o tempo seja pela polícia, seja pelos canais de televisão. Só agora depois do trágico desfecho, que acabou com a morte desta jovem de 15 anos e com o grave ferimento de sua amiga Nayara, atingida com um tiro no rosto, começam a vir à tona o que pelo que parece os que conduziam a ação faziam questão de ignorar, relatos de uma relação marcada pelos ciúmes e pela possessividade, de agressões físicas sofridas por esta jovem antes e durante todo o seqüestro, que inclusive já estavam relatadas em depoimento a policia, pois por mais que fizesssem questão de ignorar, estávamos diante de mais um caso de violência contra a mulher.

O sentimento que levou este rapaz a cometer este terrível ato, não foi apenas uma desilusão amorosa e sim os enraizados valores disseminados cotidianamente em nossa sociedade onde a mulher é vista como um objeto, que devem estar a disposição dos homens, sobre as quais eles devem manter o poder sobre seu corpo, seus sentimentos, seus atos e quando não mais for possível domina-las, estes que determinam sobre sua vida e morte.

Valores estes que só neste final de semana, permitiram por assim dizer que em Santo André/SP o ex-namorado de Eloá tirrasse a sua vida; que na Grande Belo Horizonte o ex-marido da jovem Patrícia, de 21 anos, a matasse e fugisse com a filha do casal de 2 anos, e ainda que um vizinho entrasse atirando na casa de uma jovem de 17 anos, só porque ela não queria ter nada com ele.

Assim, ficamos a assistir ao vivo, o jovem Lidemberg determinar a seu bel prazer sobre a vida e a morte das duas jovens que se encontravam sobre seu domínio, diante da passividade de uma polícia e das autoridades que mais pareciam se preocupar com as repercussões de uma possível ação violenta, do que com a vida e a integridade destas 2 jovens. A gravidade do crime passou a ser menosprezada, ou até mesmo, diminuída porque estava sendo cometido “por amor” e não por um “criminoso”, ignorando as complexas relações sociais e a dominação masculina, que colocavam a vida destas jovens numa situação de vulnerabilidade ainda maior.

Assim, devemos neste momento nos questionar até quando a nossa sociedade aceitará violências, agressões, tortura e morte das mulheres mascaradas pela desculpa do amor. Até quando permitiremos que o amor em nossa sociedade seja usado como desculpa para manter posse, poder e domínio sobre as mulheres.... Devemos lembrar a velha frase usada pelo movimento feminista, mais infelizmente, ainda longe de sair de contexto: QUEM AMA NÃO MATA! Devemos ficar atentas pois na nossa sociedade esta mais que provado que O MACHISMO MATA!!!

Por isso devemos nos unir e espalhar por todos os cantos deste país Chega de machismo, chega de violência, chega de mortes.... POR MIM, POR NÓS E PELAS OUTRAS NÃO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER!
Rio de Janeiro, 21 de Outubro de 2008.


Assinam:

Articulações/ Instituições:

ACTION AID

Articulação de Mulheres Brasileiras

Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA

Comitê Vila Aliança

Conselho de Mulheres da Zona Oeste – COMZO

Conselho Estadual da Juventude do Rio de Janeiro - COJUERJ

Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres do Rio de Janeiro - CEDIM

Coletivo de Mulheres Negras/RJ

CRIOLA

Grupo Curumim - PE

DENEGRIR – UERJ

Fórum de Mulheres de Pernambuco

Fórum de Juventude do Rio de Janeiro - FJRJ

GT Mulheres de Axé - Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras

Mandato Deputada Estadual Inês Pandelo

Mandato Deputado Estadual Marcelo Freixo

Movimento Rio Carioca

Marcha Mundial das Mulheres

Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas – Ibase

Instituto de Imagem e Cidadania

Observatório Jovem do RJ/ UFF

Rede de Mulheres em Comunicação

Rede Iyá
Àgbá - Rede de Mulheres Negras Frente à Violência

Políticas Alternativas para o Cone Sul - PACS

SARÇA de Mulheres Trabalhadoras de Nova Sepetiba

Secretaria Estadual de Mulheres do PT/RJ

Setorial de Mulheres do PSOL

União Estadual dos Estudantes UEE-RJ


Individuais:

Adriana Benedikt - Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio

Antonia Aldenisa Ferreira Santos – PE

Arlanza Maria Rodrigues Rebello – Defensora Pública/RJ

Carla Batista - Educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia

Leilah Landim - RJ

Raissa Dornelas Freitas de Brito - RJ

Reimont Santa Bárbara – Vereador eleito do PT/RJ

Ruth Floresta de Mesquita - RJ

Sirlei Dias – Empregada doméstica agredida por garotos na Barra

Thaís Heringer

O direito das mulheres a seu corpo


A expressão “nosso corpo nos pertence” tem sido uma das bandeiras centrais do movimento feminista desde os anos 1970. Ela expressa a vontade de autonomia das mulheres, de ter desejos e exercê-los sem o controle dos homens de sua família, do Estado ou das instituições religiosas. Ela recobre o questionamento à imposição de padrões de beleza, de normas na sexualidade e na reprodução. Aparentemente a mudança de costumes, a maior presença das mulheres na vida pública e avanços tecnológicos como a pílula anti-concepcional teriam feito desta bandeira uma realidade. Mas, para quantas? E, por quanto tempo? Qual a atualidade do debate em relação ao direito das mulheres de decidirem sobre seu corpo? O que temos visto nos últimos anos é que as pressões dos homens, das instituições religiosas e do Estado se somam às ofertas e exigências do mercado.

O mercado se apropria de elementos tradicionais da construção do gênero feminino como sua identidade relacionada ao outro num movimento permanente de tentar agradá-lo, a maternidade e a prostituição.

Vende-se um corpo perfeito

Os meios de comunicação, e a publicidade em particular, constroem o imaginário da mulher perfeita pelo corpo perfeito. Uma mulher jovem, loira, magra, alta, de seios voluptuosos, de cabelos longos.

Seios grandes podem ser comprados em miligramas de silicone. Segundo o secretário geral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, em entrevista à Folha de São Paulo, a quantidade de adolescentes que colocam prótese de silicone aumentou 300% nos últimos dez anos. Nesta reportagem uma jovem comentava sua cirurgia: “meus pais não queriam deixar, mas o corpo é meu, não é deles”.

Seria uma leitura simplista associar a fala desta jovem à bandeira “nosso corpo nos pertence”, pois seria desconsiderar a máquina que move o negócio da cirurgia plástica no Brasil. Somos o segundo país em cirurgias plásticas no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Em 2003 foram realizados 400 mil procedimentos no país. O crescimento do mercado também se dá por sua expansão para as mulheres do meio popular mediante parcelamentos, consórcios, ou dívidas com agiotas.

E os riscos não são só estes. Em novembro de 2002, a faxineira Maria de Oliveira morreu em decorrência de complicações em uma cirurgia de redução da mama. Entre 2000 e 2002 cinco mulheres morreram em conseqüência de lipoaspiração feita pelo médico Marcelo Caron, em Goiânia e Brasília.

Histórias como estas revelam a ansiedade com que mulheres de todas as classes sociais têm vivido a relação com seu corpo. Ao mesmo tempo em que em nossa voraz sociedade de consumo comer e comprar são atos compulsivos que aliviam as dores da existência, o reconhecimento das mulheres na sociedade é diretamente relacionado a seu peso e proximidade do padrão de beleza.

As jovens sofrem com transtornos alimentares como bulimia, anorexia, doenças que estão entre as principais causas de mortes das jovens segundo a Organização Mundial de Saúde. No início as jovens se sentem controlando seu corpo podendo comer e vomitar ou se recusando a comer e aos poucos se percebem prisioneiras da obsessão de ser magra.

Outra reação extrema na busca do “peso ideal” são as cirurgias de redução do estômago. Entre 1978 e 1993 foram realizadas 15 cirurgias no Brasil. Em 1999, foram 900 e em 2001, 3 mil.
As cirurgias de redução do estômago lembram as cirurgias de retirada de parte do cérebro de pessoas diagnosticadas como doentes mentais no século XIX. E uma companhia americana patenteou um tratamento para obesos à base de eletrochoques. Os dois exemplos nos fazem pensar na forma como o diferente é tratado em nossa sociedade, na simplificação da ciência com a relação de causa e efeito, no poder médico. Tudo isto somado à ideologia da eficiência, eficácia e soluções imediatas típicas do neoliberalismo.

Quais as motivações das mulheres para se submeterem a intervenções cirúrgicas em condições tão mais precárias quanto menor a renda que dispõem? E os tratamentos extremos para perder peso, rugas, marcas do tempo ou qualquer sinal de individualidade que as distanciem da mulher-ícone do momento? A forma como é olhada pelo outro, manter uma relação afetiva e até mesmo programas de controle de peso dos funcionários por empresas estão entre as respostas.

Compram-se embriões

Pelo senso comum e pelas regras da sociedade patriarcal, uma mulher só é uma mulher completa se ela é mãe. O feminismo resgata que a reprodução, o cuidado com o outro são fundamentais para a humanidade. Enquanto que a sociedade capitalista considera apenas a produção e o mercado, relegando a reprodução como a “parte da vida inválida de ser vivida”. O feminismo pôs em debate a função social da maternidade, a responsabilidade do poder público em garantir serviços de saúde de pré-natal e parto, creche e educação, entre outras políticas. E ao mesmo tempo, que as mulheres devem decidir se querem ou não ter filhos e o momento de tê-los.
Uma ideologia que cimenta nossas relações sociais de poder é a naturalização de tudo que envolve a reprodução e a maternidade. Omitem-se assim os custos e o trabalho da reprodução que são designados às mulheres. É impossível saber se o desejo de uma mulher ser mãe é uma vontade própria, de dar um herdeiro para seu marido, ou garantir que alguém cuidará dela na velhice. Estas e outras entre tantas motivações que se referem às condições como ela vive e a práticas sociais hegemônicas. Este desejo construído e naturalizado é manipulado pelas clínicas de reprodução assistida.

Encontra-se em discussão no Senado e na Câmara a Lei de Biossegurança e o Projeto de Lei sobre reprodução assistida. Um intenso debate, mesmo que restrito a especialistas e religiosos, tem acontecido sobre o destino de milhares de embriões excedentes que são produzidos na reprodução assistida. Chama-se atenção para o uso potencial destes embriões em pesquisas sobre o uso de células-tronco ou clonagem. Isto nos faz pensar que a gravidez pode não ser o principal produto deste negócio.

Impressiona, porém, que os debates sobre ética tratem apenas do destino dos embriões e quase nada seja dito sobre as mulheres que se submetem a intervenções dolorosas, hormônios em altas dosagens, procedimentos de risco, para se tornarem poedeiras de embrião, verdadeiras fábricas de matéria viva de alto valor comercial. Este silêncio se explica pela despolitização do debate sobre a maternidade. É como se fosse um ultraje questionar, ou mesmo discutir, o desejo das mulheres de serem mães biológicas. Submeter seu corpo a estas intervenções e riscos também não se refere a um controle de seu corpo, pelo contrário, é entregá-lo ao poder médico.

Esta hipocrisia dá hemorragia

A ideologia de reforço à maternidade biológica se converte em ataques ao direito das mulheres de decidirem sobre contracepção. A negociação do uso da camisinha ainda não é prática corrente, ainda mais em condições desiguais como entre adolescentes e homens mais velhos. Assim, as mulheres continuam expostas às doenças sexualmente transmissíveis e à AIDS. O crescimento dos casos de AIDS tem sido bem maior entre as mulheres do que entre os homens, em especial na faixa dos 35 a 49 anos. Na faixa etária de 13 a 19 anos a epidemia de AIDS já é maior entre as mulheres.

A primeira grande tarefa da sociedade e das políticas públicas é ampliar o uso de preservativos. Mas o uso de preservativo não é totalmente seguro e muitas mulheres, em particular donas de casa, não conseguem negociar com seus parceiros o uso da camisinha. Se elas engravidarem contra sua vontade terão que se defrontar com o fato de que no Brasil o aborto é considerado crime com penas de até três anos de reclusão. O Código Penal de 1940 prevê como exceções as situações de estupro e de risco de vida para a mãe.

Segundo estimativas do Ministério da Saúde acontecem no Brasil cerca de 800 mil abortos por ano e cerca de 250 mil mulheres são internadas em hospitais públicos em decorrência de seqüelas de abortos realizados em condições precárias e com práticas arriscadas.
Em junho de 2004, o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar garantindo a antecipação terapêutica do parto de fetos com anencefalia (má-formação fetal que torna inviável a sobrevivência após o parto). O ministro prefere não falar em aborto, pois há consenso médico de que em todos os casos de anencefalia há óbito do feto no período neonatal. Porém, a pressão dos setores contra o direito ao aborto tem sido tão forte que o ministro decidiu convocar uma audiência pública antes do julgamento final no STF. A primeira nos 194 anos de existência do Tribunal.

A alegação destes setores é de que a prática abre caminho para o extermínio de pessoas com deficiências. Este argumento não parece sem fundamento no contexto das tecnologias de reprodução assistida onde se escolhe o sexo do bebê e se antevê que na concepção se determinariam outras características físicas. No entanto, a forma de enfrentar este risco não é restringindo o direito das mulheres nem aliená-las de seu corpo. Neste caso, como no caso da reprodução assistida, impressiona que as mulheres não contam, como se seu bem-estar ou sofrimento não fizessem parte do problema. O sistema patriarcal prefere anular as mulheres que por sua insistente vontade de existir como seres pensantes e autônomos são fontes de riscos e problemas para eles.
Para aqueles que crêem na emancipação humana, o caminho para que todas as mulheres tenham responsabilidade consigo mesmas, com sua comunidade e com as gerações futuras é que elas tenham condições de direito e de fato de decidir. Isto pressupõe não só que o aborto deixe de ser crime como seja regulamentado e com acesso garantido pelo Sistema Único de Saúde.

Esta foi uma das propostas aprovadas na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em Brasília em julho de 2004. Participaram na Conferência duas mil mulheres eleitas delegadas em conferências que ocorreram nos 27 estados brasileiros.

Compram-se moças bonitas

Uma visão liberal da bandeira nosso corpo nos pertence é de que as mulheres podem dispor de seu corpo mesmo para vendê-lo na prostituição. Toda nossa solidariedade com as mulheres prostitutas não nos impede de ser críticas à instituição da prostituição e a visões de que a sexualidade é mais um mercado de trabalho.

Novamente se pensa nas motivações das mulheres que recorrem à prostituição de forma isolada desconsiderando os sistemas de aliciamento da indústria da prostituição, cada vez mais poderosos no turismo sexual e no tráfico de mulheres. Ambos vêm ganhando força em uma divisão internacional e sexual do trabalho em que a exportação de pessoas é vista como mais um recurso para países exportadores de commodities assegurarem o acesso a divisas que mantém o ciclo de sua inserção subordinada no mercado internacional.

O Serviço à Mulher Marginalizada têm divulgado uma série de denúncias que dão rosto aos números do terceiro maior negócio clandestino do mundo, o tráfico de mulheres. Em maio deste ano, Carina Carla do Nascimento de 19 anos aceitou a proposta de um agenciador de mão-de-obra para trabalhar como agente de turismo na Cidade do México ganhando bem mais do que seu salário de recepcionista. Carina, como outras “moças bonitas com idades entre 18 e 20 anos” eram recrutadas, sem saber, para trabalhar em casas de prostituição. Em 13 de julho de 2004 Carina recusou se prostituir e em represália colocaram cinco gramas de cocaína em sua bebida matando a de overdose.

Em 19 de setembro de 2004 morreram cinco garotas, duas delas menores de idade, no naufrágio de uma embarcação no Rio Negro. Este acidente revelou uma nova rota de tráfico de jovens mulheres e adolescentes vinculadas aos pacotes de pesca esportiva na região amazônica. A Polícia Civil do Amazonas relata que meninas de 14 a 17 anos são aliciadas por quantias entre R$ 800 a $ 1.500,00 para programas com turistas brasileiros e estrangeiros que gastam em média US$ 3.900 num pacote de pesca na região.

Não podemos aceitar um argumento cínico de que elas estão melhor assim do que passando fome com suas famílias. Queremos que as pessoas vivam melhor com o acesso à terra, a condições de produzir, com emprego, acesso à saúde, educação, habitação, lazer e sonhos para o futuro. Não queremos que a manutenção das pessoas na miséria garanta o fornecimento de meninas para a prostituição e meninos para o tráfico de drogas ou o trabalho escravo.
Nosso corpo nos pertence guarda um sentido revolucionário: a extensão e a profundidade das transformações necessárias para que esta bandeira seja real para todas as mulheres do mundo são imensas. Podemos começar pela nossa reflexão militante, pelos termos em que pensamos a realidade, construímos propostas e agimos para concretiza-las.

Miriam Nobre

Porque Economistas Feministas e Anti-Racistas Precisam ser Marxistas

por Julie Matthaei*


Este artigo defende uma economia marxista feminista e anti-racista. Argumenta que a economia política e social feminista e anti-racista precisa trabalhar dentro da estrutura teórica marxista para entender a dinâmica do capitalismo e defender uma alternativa socialista libertadora.

À primeira vista, isso pode ser uma proposta confusa. Feministas e anti-racistas criticaram Marx e marxistas por privilegiar classe e virtualmente ignorar gênero e raça, e por enfatizar a centralidade das relações econômicas (leia-se a mediação do mercado) sobre as relações familiares. Contudo, através dos anos, marxistas-feministas e anti-racistas trabalharam para tornar o marxismo uma tradição mais adequada na qual se estabelecessem. Os aspectos abrangentes do marxismo representam, em minha opinião, uma estrutura e um ponto de partida coerente e frutífero para a análise econômica feminista e anti-racista que é de longe superior à outra alternativa dominante, a economia neoclássica.

1)A análise econômica marxista oferece às economistas feministas e anti-racistas uma estrutura teórica que é compatível com análises de gênero e raça como construções sociais. A chave para as teorias feministas e anti-racistas é o desafio de argumentos de “diferenças naturais” que foram usados por sociedades para justificar desigualdades de gênero e étnico-raciais. As economistas feministas e anti-racistas querem argumentar que essas diferenças e desigualdades são socialmente construídas e por essa razão abertas a mudanças. A economia marxista permite exatamente tal análise. A teoria marxista centrou-se na construção de classe. Contudo, marxistas feministas e anti-racistas aperfeiçoaram a economia marxista para mostrar os caminhos nos quais as relações econômicas e instituições contribuem para a construção de gênero e etnicidade de raças.

Olhar o marxismo como teoria das relações sociais fundamentais

Feministas marxistas, por exemplo, desenvolveram e utilizaram o conceito de divisão sexual do trabalho – a designação de sexos para atividades sociais diferentes e desiguais – como chave para a construção de diferenças de gênero. Teóricos raciais mostraram como divisões raciais de trabalho produziram e reproduziram raça, assim como classes e gêneros diferenciados sobre raças. Mais ainda, a interdisciplinaridade da teoria marxista deixa espaço para a incorporação de processos não-econômicos para uma análise da construção de gênero e raça – processos tais como religião, psicologia, família e política. Em contraste, a economia neoclássica oferece pequena possibilidade de incorporar pontos de vista feministas e anti-racistas de diferenças de gênero e etno-raciais. Explica a desigualdade racial e de gênero como o resultado de diferenças naturais em habilidades, diferenças raciais e sexuais em preferências, e “gostos” discriminatórios. Todas essas três são vistas como tendo origem fora da economia, e por isso fora do domínio da teorização econômica. Ainda, tais teóricos têm pouco a dizer sobre as origens da desigualdade ou das preferências discriminatórias – e, em particular, ignoram o poderoso papel que a economia capitalista tem desempenhado ao produzir e reproduzir racismo e sexismo.

2)Economistas feministas e anti-racistas perceberão que a teoria marxista por sua postura política explícita é mais acessível do que a teoria neoclássica com suas referências brancas e masculinas. É verdade que Marx afirmava que sua teoria era objetiva e científica, e de fato, utilizava essa afirmação para denominar feministas socialistas como “utópicas”. Por outro lado, Marx entendeu a importância política das idéias – especialmente o papel das teorias predominantes em racionalizar o status quo. Por esta razão, a crítica feminista e anti-racista quanto ao foco principal da economia marxista ser na classe, o que protege interesses brancos e masculinos, é compreensível a partir do discurso marxista. Mais ainda, pode-se partir das considerações do marxismo sobre a construção de uma economia mais livre, igual, democrática e sólida, para o reconhecimento explícito de uma agenda política feminista e anti-racista motivando um trabalho teórico. Economistas feministas e anti-racistas deveriam ser marxistas porque o conceito econômico de classe que a teoria marxista desenvolve é indispensável a qualquer entendimento significativo de gênero e raça e para as organizações feministas e anti-racistas terem sucesso.

Processos de classe diferenciam gênero e etnicidade em formas significativas e teorias que ignoram essas diferenças são invalidadas. Por exemplo, as teorias marxistas feministas argumentaram que o desempenho das mulheres no trabalho doméstico não pago para seus maridos é o aspecto chave da opressão das mulheres. Contudo, algumas mulheres foram capazes de usar o privilégio de classe – normalmente obtido através de seus maridos – para libertarem-se desse trabalho. Em contraste, mulheres pobres assumiram esse trabalho como empregadas domésticas e, ao mesmo tempo são chamadas a cuidar adequadamente de suas próprias famílias.

Similarmente, a opressão racial-étnica não pode ser vista como um fenômeno unitário de cruzamento de classe.

Finalmente, a incorporação de uma postura baseada na classe é necessária para a visão política de economistas feministas. Um foco sobre gênero sozinho tende a dissolver-se em políticas de ação afirmativa e anti-discriminatórias. Mesmo que essas fossem de alguma forma capazes de separar raça e gênero de classe, trazendo representação igual de mulheres brancas e pessoas não brancas através da hierarquia econômica, a maioria das mulheres e pessoas não brancas seriam classe trabalhadora, vivendo à margem da economia, sem controle significativo sobre as condições de trabalho, sujeitas ao risco de repentino desemprego e pauperização.

3)Economistas feministas e anti-racistas precisam basear suas análises na teoria marxista – em vez da teoria neoclássica – para ter a possibilidade de imaginar a construção de uma sistema econômico melhor. Porque de fato, as maiores vítimas do capitalismo não são, como sugerido por Marx, homens brancos da classe trabalhadora, mas sim mulheres pobres e não brancas, especialmente mães solteiras e seus filhos.

As teorias marxistas oferecem uma estrutura dentro da qual economistas feministas e anti-racistas podem trabalhar para articular caminhos nos quais uma nova economia, mais socializada, democrática e corporativa pode ser construída – uma economia na qual gênero e raça são ambos reconstituídos de uma maneira não hierárquica, ou eliminados completamente e na qual a conexão economia – família pode ser reestruturada de forma que mulheres e crianças não estejam em desvantagem. Mais ainda, a teoria marxista oferece uma prescrição para tal transformação: ação coletiva, alimentada por uma ciência social libertadora.

*a autora é economista, do Wellesley College. Este texto é um resumo do item II do artigo “Porque feministas, marxistas e economistas políticos anti-racistas precisam ser feministas-marxistas-anti-racistas economistas políticos”, publicado em “Feminist Economics” vol.2, n.1, 1996, EUA. Traduzido por Maria Giuseppina Curione.

Versão publicada na Folha Feminista, edição 29, novembro de 2001

Introdução: tudo por culpa do feminismo*

Os avanços e recuos das mulheres são geralmente descritos em termos militares: batalhas vencidas, batalhas perdidas, posições e territórios conquistados ou cedidos. A metáfora do combate não deixa de ter os seus méritos neste contexto e, obviamente, o mesmo tipo de relato e de vocabulário já deve estar aparecendo aqui. Mas ao imaginarmos o conflito em termos de dois batalhões claramente postados cada um do seu lado, estaríamos esquecendo a natureza tortuosa e intrincada de uma "guerra" entre as mulheres e a cultura machista em que elas vivem. Estaríamos esquecendo a natureza reativa de um backlash que, por definição, só pode existir como resposta a outra força.

Quando o feminismo está em baixa, as mulheres assumem o papel reativo - lutando isoladamente e quase sempre às escondidas para se afirmarem contra a onda cultural dominante. Mas quando o próprio feminismo se torna a onda, para a oposição a recíproca não é verdadeira: ela finca o pé, agita os punhos, constrói muralhas e represas. E a sua resistência cria traiçoeiras ressacas e conflitantes correntezas.

Os avanços e recuos das mulheres são geralmente descritos em termos militares: batalhas vencidas, batalhas perdidas, posições e territórios conquistados ou cedidos. A metáfora do combate não deixa de ter os seus méritos neste contexto e, obviamente, o mesmo tipo de relato e de vocabulário já deve estar aparecendo aqui. Mas ao imaginarmos o conflito em termos de dois batalhões claramente postados cada um do seu lado, estaríamos esquecendo a natureza tortuosa e intrincada de uma "guerra" entre as mulheres e a cultura machista em que elas vivem. Estaríamos esquecendo a natureza reativa de um backlash que, por definição, só pode existir como resposta a outra força.

Quando o feminismo está em baixa, as mulheres assumem o papel reativo - lutando isoladamente e quase sempre às escondidas para se afirmarem contra a onda cultural dominante. Mas quando o próprio feminismo se torna a onda, para a oposição a recíproca não é verdadeira: ela finca o pé, agita os punhos, constrói muralhas e represas. E a sua resistência cria traiçoeiras ressacas e conflitantes correntezas.

A força e o furor do contra-ataque antifeminista agitam-se por baixo da superfície, quase sempre invisíveis para a maioria. Na última década, houve ocasiões em que se tornaram visíveis. Já vimos políticos da Nova Direita condenando a independência das mulheres, manifestantes contra o aborto jogando bombas incendiárias em clínicas, pregadores fundamentalistas condenando as feministas como "prostitutas" e 'bruxas". Outros sinais da fúria do backlash, devido à própria brutalidade, podem às vezes chegar até a consciência do público - o repentino aumento dos casos de estupro, por exemplo, ou o crescente sucesso da pornografia que exibe extrema violência em relação às mulheres.

Estes fatos estão todos relacionados entre si, mas não quer dizer que sejam coordenados. O backlash não é uma conspiração, com um conselho emanando ordens de uma sala de controle central, e as pessoas que se prestam aos seus fins muitas vezes nem estão conscientes dos seus papéis; algumas até se consideram feministas. Na maioria dos casos, as suas maquinações são disfarçadas e ocultas, impalpáveis e camaleônicas. E tampouco podemos dizer que todas as manifestações do backlash tenham o mesmo peso e o mesmo significado; muitas não passam de coisas efêmeras, geradas por uma máquina cultural que está continuamente à cata de "novos" ângulos. Considerados em conjunto, entretanto, todos estes códigos e bajulações, estes murmúrios e ameaças e mitos, levam irreversivelmente numa única direção: tentar mais uma vez prender a mulher aos seus papéis "aceitáveis' - seja como filhinha de papai ou criaturinha romântica, seja como procriadora ativa ou passivo objeto sexual.

Embora o contra-ataque antifeminista não seja um movimento organizado, nem por isso deixa de ser destrutivo. Com efeito, a falta de coordenação, a ausência de uma única liderança só servem para torná-lo menos visível - e talvez mais eficiente. Um backlash contra os direitos da mulher tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas, na medida em que se mostra como tudo, menos uma luta. Ele é tanto poderoso, quanto mais consegue transformar-se numa questão privada, penetrando na mente da mulher e torcendo a sua visão para dentro, até ela imaginar que a pressão está toda na cabeça dela, até ela começar a impor as regras do backlash a si mesma.

Nos anos 1980, o backlash andou pelos subterrâneos secretos da cultura, circulando nos corredores da bajulação e do medo. Ao longo do caminho usou vários difarces: desde a máscara de uma condescendente ironia até a expressão sofrida da "profunda preocupação". Os seus lábios demonstram piedade por qualquer mulher que não se enquadre na moldura, enquanto procura prendê-la na moldura. Professa uma estratégia de cizânia: solteiras contra casadas, mulheres que trabalham fora contra donas de casa, classe média contra operárias. Manipula um sistema de punição e recompensa, enaltecendo as mulheres que seguem as suas regras, isolando as que desobedecem. O backlash revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-os passar por fatos novos, ignorando qualquer apelo à razão. Acuado, nega a sua própria existência, levanta um dedo ameaçador contra o feminismo e procura desaparecer nos subterrâneos.

Culpar o feminismo pela "vida inferior" das mulheres significa não entender nada do movimento feminista, que se propõe oferecer às mulheres um leque maior de experiências. O feminismo continua sendo um conceito bastante simples, apesar das repetidas - e extremamente eficazes - tentativas de pintá-lo com cores sombrias transformarem suas defensoras em verdadeiras gárgulas. Como escreveu Rebecca West ironicamente em 1913: "eu mesma nunca cheguei a entender direito o que quer dizer feimnismo: só sei que as pessoas me chamam de feminista toda vez que expresso sentimentos que me diferenciam de um capacho".

Na verdade, o sentido da palavra "feminista" nada mudou desde que apareceu pela primeira vez numa resenha literária publicada na Athenaeum, em 27 de abril de 1895, descrevendo uma mulher que "tem nela a capacidade de lutar para chegar à sua própria independência". É a proposta básica feita por Nora, há um século, em Casa de Bonecas, de Ibsen, "antes de mais nada, eu sou um ser humano". É simplesmente o cartaz que uma mocinha segurava em 1970 durante a Greve das Mulheres pela Igualdade: EU NÃO SOU UMA BONECA BARBIE. O feminismo pede que o mundo finalmente reconheça que as mulheres não são elementos decorativos, biscuits preciosos, membros de um "grupo de particular interesse". Elas são merecedoras de direitos e de oportunidades, tão capazes de participar dos acontecimentos mundiais quanto os homens. O programa feminista é muito simples: pede que as mulheres não sejam forçadas a "escolher" entre justiça pública e felicidade privada. Pede que as mulheres sejam livres para definir a si mesmas - em lugar de terem sua identidade definida pela cultura e pelos homens que as cercam.

O fato de estes assuntos continuarem sendo tão incendiários deveria bastar para mostrar que a mulher ainda tem um longo caminho a percorrer antes de entrar na terra prometida da igualdade.

*Trecho de BACKLASH - O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres, de Susan Faludi, Editora Rocco.

Carta das Mulheres


As mulheres do PT foram protagonistas na construção de um feminismo popular e de esquerda no Brasil. A partir da organização das mulheres, o PT inovou em ações para combater a desigualdade entre homens e mulheres tanto em políticas públicas quanto no interior do partido e nos movimentos sociais. A militância petista incorporou a visão de que para transformar a sociedade e construir o socialismo é fundamental transformar as relações entre homens e mulheres. A perspectiva de um feminismo socialista não dissocia a luta pela superação da opressão sexual da necessidade de profundas mudanças sociais e da ruptura com as desigualdades de classe e étnico-raciais, bem como da discriminação com relação à orientação sexual.


As políticas para as mulheres devem se combinar com a mobilização e a atuação do movimento de mulheres e das mulheres do PT, para construir a força necessária para enfrentar o machismo na sociedade. O neoliberalismo expandiu a mercantilização a todas as esferas da vida e, especificamente, ampliou a mercantilização do corpo e da vida das mulheres. Há um aumento da exploração sexual, do tráfico de mulheres e do turismo sexual, que reforçam o controle do corpo feminino. É necessário construir uma visão crítica dos efeitos do neoliberalismo na vida das mulheres, como a precarização do trabalho e a sobrecarga de trabalho doméstico que são conseqüências das privatizações e do sucateamento dos serviços públicos. A Juventude do PT deve ter o compromisso com a autonomia e liberdade das mulheres, que hoje passa pelo combate a mercantilização do corpo e da vida das mulheres, como um dos elementos centrais do enfrentamento ao neoliberalismo.


Assistimos a um avanço impressionante do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, inclusive no interior do PT. Atitudes e posições que seriam consideradas inaceitáveis no ambiente político impregnado pelo feminismo socialista do final dos anos oitenta, tornaram-se naturais. Não podemos aceitar o discurso e argumentos conservadores para justificar a prática machista. Desde o relaxamento no combate e denúncia de atitudes machistas até a admissão de que parlamentares e lideranças possam protagonizar campanhas contra os direitos das mulheres, como tem ocorrido com ações contra a legalização do aborto.


A Juventude do PT deve articular, agir e garantir que o PT atue como defensor intransigente do direito a igualdade e autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo, destacando-se aqui a defesa da legalização do aborto (o qual é praticado em grande parte por jovens mulheres, em sua maioria marginalizadas pelo sistema) e regulamentação do atendimento a todos os casos no serviço publico, garantindo esta decisão as mulheres. O 3o Congresso do PT aprovou uma resolução neste sentido, e a JPT deve atuar para garanti-la, através de uma campanha interna para que o conjunto do Partido, e em especial os e as Parlamentares, assumam e encaminhem a posição do PT. Esta campanha interna será organizada buscando uma parceria com a Secretaria Nacional de Mulheres do PT, para a elaboração de materiais, realização de espaços de formação para a militância, pressão junto aos parlamentares e à direção nacional do PT.


Neste sentido, considerando que propomos uma juventude de massas, devemos aprovar que a direção originada neste 1ConJPT defenda uma campanha nacional a favor da Legalização do Aborto, buscando um diálogo com toda a juventude brasileira.


Fora Machismo da JPT!


As relações estabelecidas entre homens e mulheres na JPT são caracterizadas pelo machismo, que se expressa na ‘invisibilidade’ da militância feminina e nas freqüentes desqualificações, assédios e violência contra as mulheres. As atitudes machistas na JPT são injustificáveis e devem ser combatidas afirmativamente, com práticas cotidianas, saindo do campo das idéias e das disputas internas para a construção real de novos valores e novas relações, fundamentais para o socialismo feminista.

A partir do 1o ConJPT, a JPT tem possibilidades concretas de incorporar o debate feminista como parte da construção de uma plataforma de lutas para a transformação social.


Paridade Já!


A participação das mulheres em todo o processo do Congresso demonstrou a presença militante na construção cotidiana do Partido, da JPT e nos movimentos sociais, mas esta presença ainda não se reflete nas instâncias de direção. É necessário consolidar a presença das mulheres em todos os espaços e instâncias da JPT, por meio de formação feminista a toda a militância jovem do Partido.

A direção da JPT deve ter composição no mínimo paritária entre homens e mulheres, alem de definir que as delegações para os espaços nacionais também sejam, no mínimo, paritárias. Para consolidar a paridade, a JPT deve garantir a presença das mulheres em todos os processos de formação, elaboração e no encaminhamento das lutas da nossa juventude.


A exemplo de militantes que deixaram de participar deste 1o ConJPT pela ausência de uma organização que fique responsável por cuidados de filhas e filhos, a direção da JPT deve se responsabilizar pela garantia de condições para que as militantes participem dos espaços políticos, como a obrigatoriedade de creches nos encontros e congressos do Partido.


Para que o feminismo esteja presente de forma permanente na JPT deve ser garantido um espaço de auto-organização das mulheres. A auto-organização é o instrumento político para que as resoluções aprovadas neste congresso sejam garantidas e para que a organização das mulheres se fortaleça na JPT. Propomos que para além da formação as mulheres tenham seu espaço garantido e estimulado, pois não estamos aqui apenas para preencher cotas e sim para participar efetivamente na construção do Partido e de uma sociedade socialista.


Moção de Repúdio


A Juventude Feminista do Partido dos Trabalhador@s repudia o julgamento de quase 10.000 mulheres do estado do Mato Grosso do Sul que praticaram o aborto ilegal e estão sendo perseguidas e punidas pela justiça conservadora do seu estado.


2.12.08

Por que discutir gênero?


“Não digam nunca: isso é natural!
Para que nada passe por imutável”
(Bertold Brecht)

Questionar e redesenhar as relações sociais entre homens e mulheres é tarefa nada fácil. O senso comum diz que as desigualdades de gênero foram superadas, e que as mulheres já encontraram seu lugar. Essa compreensão equivocada renova a acomodação de mulheres sem perspectivas e o conforto de homens com a prerrogativa da decisão.

Mas quem pára para refletir sobre isso facilmente constata que a realidade é outra. Por que a maior parte dos casos de violência contra a mulher é praticada dentro de casa? Por que ainda há mulheres sofrendo violência sexual? Por que as mulheres são minoria nos cargos de direção do mercado de trabalho? Por que 70% da população pobre do mundo é constituída por mulheres?
Isso tudo e muito mais representam a ponta do iceberg de uma construção histórica e social que determinou um lugar social para as mulheres que não era o de sujeitos políticos, de protagonistas históricas, mas de inferioridade em relação ao homem. Pensemos bem... quais as características associadas ao masculino? Virilidade, força, bravura, racionalidade. E ao feminino? Ternura, cuidado, zelo, atenção, carinho, fragilidade. É aí que se encontra o conceito de gênero.

O termo “gênero” é usado para designar a construção social feita do que é masculino e do que é feminino. A utilização desse termo nos leva a refletir sobre o caráter essencialmente social das desigualdades e da hierarquização das relações sociais entre homens e mulheres; e além disso, uma vez que são construções sociais, ou seja, elaboradas ao longo da história pelos seres humanos, essas relações não são naturais, e podem – e devem – ser transformadas.
Gênero e identidade

Uma menina nem sabe, mas, simplesmente por ser mulher, já pode haver muitos caminhos pré-determinados na sua vida. Ela vai brincar de boneca, de casinha, de comidinha, não porque essa atitude é intrínseca a ela, mas porque existe um contexto social que a leva a isso. Assim, ela vai aprendendo a ser uma mãe zelosa, uma esposa dedicada, uma mulher recatada. Dificilmente ela será engenheira ou matemática, é mais provável que seja professora ou enfermeira.

Como podemos perceber, a identidade de meninos e meninas vai sendo modelada desde muito cedo. Simplificando bastante, o menino é ensinado a ser forte e protetor, enquanto a menina é ensinada a ser frágil e protegida. Esse binômio já nos leva a perceber a hierarquização que está presente nas relações sociais entre homens e mulheres.

As referências colocadas pela mídia dialogam e reafirmam esse imaginário social excludente. Expõem-se padrões de comportamento que são ainda mais rígidos no caso das mulheres. Se aos 7 anos ela quer ser a Cinderela, doce, frágil, que nunca levanta a voz nem desafia ninguém; aos 15, para ser aceita, ela se espelha na Tiazinha, a mulher sensual, sedutora, que nunca nega sexo. E o que há de comum entre a Cinderela e a Tiazinha? A fragilidade, a ternura, a sensualidade são características diretamente associadas à submissão.

Passa a caber às mulheres, portanto, um papel secundário na transformação do mundo e das relações políticas e sociais, e uma vez assumido esse “segundo lugar”, a opressão de gênero ganha cada vez mais força. Enquanto as mulheres não se reconhecerem e não se organizarem enquanto sujeitos políticos, sua própria libertação fica comprometida. Afinal, não se sabe de um único episódio na história moderna da humanidade em que direitos tenham sido dados por alguém. Direitos não são presentes, são conquistas. Olha aí a importância de discutirmos gênero.

As estudantes e a luta das mulheres

Portanto, para que, de fato, caminhemos rumo a uma sociedade igualitária, livre de opressões de gênero, raça ou classe, é preciso que o setor oprimido protagonize sua própria emancipação. E como será que o movimento estudantil pode intervir nessa construção?

A cultura sexista que observamos nas diversas esferas da nossa sociedade também se manifesta no movimento estudantil. Numa entidade, por exemplo, geralmente, as mulheres cumprem tarefas de organização interna, enquanto os homens se expõem e se tornam referências como figuras públicas. Num fórum de discussão, como uma assembléia, a imensa maioria dos falantes são homens, e, muitas vezes, as mulheres que “ousam” tomar a palavra são limitadas por assobios, gracejos, piadinhas e tantas outras formas de desrespeito e desqualificação.

Aqueles que contribuem para a manutenção desse cenário, algumas vezes, mal se dão conta do quão nociva é a sua atitude, e assim, acabam referenciando a política no masculino, desqualificando a intervenção feminina, excluindo as mulheres e reproduzindo toda uma cultura de opressão que nós observamos hoje.

É preciso romper com uma lógica de pré-determinação dos lugares sociais de homens e mulheres. Depois de algum exercício de percepção e reflexão, vemos que a mulher é educada para o espaço privado, enquanto o espaço público é majoritariamente composto por homens, ganhando características masculinizadas, como se não coubessem mulheres ali.
Eis aí mais uma barreira a ser rompida. A presença das mulheres no espaço público – o da política, por exemplo – é fundamental para a transformação de um imaginário social que submete as mulheres aos homens, e para a transformação de uma sociedade que legitima e reproduz esses valores discriminatórios a todo instante.

Aí reside a importância das ações afirmativas. A UNE (União Nacional dos Estudantes) reserva 30% de seus cargos às mulheres. Mas por quê? Não soa artificial demais?
Pode ser. Mas por meio de medidas artificiais, como as cotas, nós estamos afirmando que a igualdade de gênero não existe, e que precisa ser buscada. Além disso, o combate ao machismo nas diversas esferas da sociedade passa também por desconstruir um senso comum que exclui as mulheres desses espaços públicos, que as torna invisíveis. As cotas representam, portanto, um mecanismo de inserção política que dá visibilidade à luta das mulheres.

E a universidade?

Logicamente, a universidade não é uma ilha isolada do resto do mundo, e portanto, as desigualdades postas para além dos seus muros também se reproduzem dentro dela. A diferença qualitativa é que a universidade, como espaço de formulação, de crítica e de compreensão histórica, deveria ser um dos instrumentos contra essas opressões.

Alguém que se classifica como “libertário”, que, na universidade, luta em defesa da educação de qualidade, transformadora da realidade, que condena o autoritarismo dos poderosos, esse alguém não é coerente, pior, não é sequer um real ator político no processo de transformação social, na medida em que reproduz vícios machistas e contribui para manter a exploração, a “coisificação” e a opressão das mulheres. Se entendermos a universidade como espaço privilegiado para a disputa de pensamento, de hegemonia, de construção da sociedade que queremos, passa por esse espaço, necessariamente, a superação das opressões de gênero.

A participação das mulheres no processo de educação como um todo pode ser representada por uma pirâmide, sendo a base a educação infantil e o ápice, a universidade. As mulheres são quase exclusivamente responsáveis pela educação infantil, e sua presença ainda é majoritária no ensino fundamental. Na universidade, as professoras são minoria, e essa minoria se reduz ainda mais quando falamos de posicionamento na carreira (professoras titulares são poucas). Ou seja: as carreiras de mais prestígio e onde estão os melhores salários são menos ocupadas por mulheres.

E a produção de ciência e tecnologia? A presença feminina em cargos de direção em institutos e comissões de pesquisa nas universidades é bastante reduzida, mas pode-se dizer mais. Será que essa ciência e essa tecnologia que nossas universidades têm produzido atendem às demandas diferenciadas das mulheres? Será que os hospitais universitários estão preparados para oferecer atenção integral à saúde da mulher?

No caso das estudantes, rapidamente identificamos problemas referentes à discriminação. Na assistência estudantil, por exemplo. Quantas universidades no Brasil apresentam creches para que as mães estudantes possam concluir seus estudos sem serem prejudicadas? Quantas universidades no Brasil levam em consideração a maior dificuldade que as mulheres têm de deixar suas casas para estudar? Isso sem falar nos campi onde ocorrem estupros com freqüência, ou em casos explícitos de assédio sexual que ficam sem solução.

Aonde vamos?

Mas o que nós queremos, então, como mulheres e como estudantes?
As diferenças entre homens e mulheres não podem ser hierarquizadas, reservando um lugar de destaque para um, enquanto a outra cumpre papel coadjuvante. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em palestra no III Fórum Social Mundial, lançou uma reflexão interessantíssima: temos o direito de sermos iguais quando as diferenças nos inferiorizam, e de sermos diferentes quando as semelhanças nos descaracterizam.

A emancipação das mulheres será obra das próprias mulheres. Por isso, é importante que o movimento estudantil, como elemento transformador não só da universidade, mas da sociedade na qual se insere, abra espaço e fortaleça essa discussão. Nos fóruns estudantis, desde os eventos nacionais até os localizados, é importante que o debate de gênero seja estimulado, oferecendo-se, assim, instrumentos para a organização das mulheres para as suas lutas.
É preciso questionar atos e hábitos cotidianos, estando atento à reprodução despercebida do machismo na nossa sociedade. Piadas, brincadeiras, musiquinhas, camisetas e qualquer elemento que reafirme a opressão das mulheres sob a pele da “brincadeira” precisa ser denunciada, precisa ser combatida. Afinal, é em espaços eminentemente simbólicos que as desigualdades de gênero encontram respaldo para se reforçar e se reproduzir.

Sendo essa uma luta dos estudantes, vale lembrar que nenhuma transformação vai acontecer enquanto houver opressões de gênero, de raça, de classe. Transformar o mundo passa por combater essas opressões. Caso contrário, não há compromisso. Há ilusão.

Alessandra Terribili
Diretora de Mulheres da UNE

As mulheres não são mercadorias


O “livre” comércio reafirma o sexismo da nossa sociedade para transformar direitos em serviços comercializáveis, e reforça a desigualdade entre homens e mulheres.


Entre os dias 10 e 14 de setembro, a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) pretende avançar na proposta de Acordo Geral sobre Comércio e Serviços (AGCS), que incluiria direitos dos cidadãos e cidadãs na categoria “serviços”, como saúde, educação, saneamento, energia, entre outros. A OMC, com isso, busca garantir os “direitos do capital”, por meio de políticas de liberalização relativas a comércio e investimentos internacionais.


Nós, estudantes, sabemos quais seriam os impactos desse acordo sobre a educação. É um grande golpe na defesa da universidade pública, uma vez que a educação passa a ser tratada como mercadoria, serviço comercializável (o governo que investe na educação pública pode ser acusado de “concorrência desleal”). Já nas instituições privadas, o descompromisso com a qualidade da formação se acentua, e o direito constitucional à educação vira refém, de uma vez por todas, do “mercado” que se abre.


Disso, podemos facilmente concluir que o acordo proposto pela OMC fere de morte a soberania nacional e coloca em cheque a construção de uma sociedade igualitária, pois os direitos são duramente ameaçados e adquirem o caráter de serviços a serem vendidos.


E as mulheres com isso?


Vale a pena aproveitar a situação posta para refletir sobre a questão das mulheres dentro disso. Primeiro, basta lembrar que as mulheres são 70% da população pobre do mundo, a quem o livre comércio propagandeado pela OMC não oferece oportunidades. O trabalho das mulheres é ainda mais precarizado, e a “dupla jornada” facilmente se torna tripla ou quádrupla.


Depois, caracterizar direitos como serviços traz impactos em outras esferas. Quem defende uma sociedade humana, igualitária, livre de opressões e da subjugação de um ser humano por outro, coerentemente, deve ser contra a implementação do AGCS. E também deve estar atento às manifestações machistas das quais o capital se vale para a própria reprodução.


Fazer esse questionamento exige um exercício de percepção. Não é à toa que a maior parte dos casos de violência contra a mulher é praticada dentro de casa. Não é à toa que, no mercado de trabalho, as mulheres estão menos presentes em cargos de direção, e ganhando menos que os homens.


Para vender seus produtos, o capitalismo não titubeia ao se apropriar da discriminação da mulher, reafirmando-a. A publicidade reserva à mulher o papel de produto, de objeto sexual, de mãe zelosa, de dona de casa dedicada. Assim, compromete a luta pela emancipação da mulher, a luta para que todos os espaços possam ser ocupados por mulheres, a afirmação de que as mulheres são sujeitos históricos e protagonizarão a própria libertação.


É fácil encontrar exemplos. A divulgação de produtos de limpeza da casa é direcionada às mulheres. A divulgação de cosméticos afirma que as mulheres terão sucesso à medida que sejam “desejáveis”. As famigeradas propagandas de cerveja reconhecidamente expõem a mulher como produto, como objeto sexual, como se dissessem aos homens: “beba esta cerveja e tenha esta mulher”, e às mulheres: “beba esta cerveja e seja esta mulher”, o que não deixa de ser ainda mais cruel.


Podemos imaginar, também, as armadilhas que o “livre” comércio trará aos países mais pobres do globo. O turismo sexual – por meio de pacotes que já incluem mulheres para programas – será cada vez mais legitimado por essa política de exploração selvagem. Isso já existe no Nordeste brasileiro, e em Angola, a prostituição chega a 50% das mulheres, e os índices de Aids quase a 25%. É esse o lugar dos países subdesenvolvidos no mundo mágico da OMC. É esse o lugar das mulheres no mundo dos direitos comercializados e da mercantilização da vida.


Transformar a nossa sociedade passa por combater o machismo que se manifesta nas mais diversas esferas. É preciso compreender que nenhuma opressão se dá ocasionalmente, mas cumpre funções, inclusive de controle social. É por tudo isso que as mulheres estudantes devem ter um posicionamento claro contra esse acordo proposto pela OMC. Em defesa dos direitos, em defesa de uma política que combata as desigualdades entre homens e mulheres, e principalmente, para afirmar que somos mulheres, e não mercadorias.


Alessandra Terribili